Valongo

O mar, vasto e insondável, carrega em suas águas a memória das histórias de dor e resistência dos povos da diáspora africana. Durante a travessia forçada do Atlântico, suas ondas foram testemunhas do sofrimento e da brutalidade da escravidão. Contudo, para além do trauma, o mar se tornou um espaço de conexão espiritual, um elo com os ancestrais e com as culturas deixadas para trás. Ele simboliza a força da ancestralidade, sendo visto como um templo sagrado onde vidas perdidas encontram repouso e onde a memória é ressignificada por meio de rituais e cantos que ecoam a luta e a sobrevivência.

Na cultura afro-brasileira, o mar é habitado por divindades profundamente veneradas, como Iemanjá, a rainha das águas, que personifica o acolhimento, a fertilidade e o renascimento. Seus cultos, marcados por oferendas, danças e orações, refletem a ligação espiritual entre os praticantes e a natureza, transformando a orla em um espaço de devoção e celebração. O mar, portanto, transcende seu papel físico e emerge como um símbolo de resistência e espiritualidade, sendo tanto um lugar de memória das dores do passado quanto de força e esperança para as gerações presentes e futuras.

Pequena África e Cais do Valongo

O Brasil foi o país que mais recebeu africanos escravizados em todo o mundo, recebeu perto de quatro milhões de pessoas, durante os mais de três séculos de duração do regime escravagista. Pelo Cais do Valongo, na região portuária da cidade, passou cerca de um milhão de africanos escravizados em cerca de 40 anos, o que o tornou o maior porto receptor de escravos do mundo.

O Cais do Valongo é um antigo cais localizado na zona portuária do Rio de Janeiro, entre as atuais ruas Coelho e Castro e Sacadura Cabral. Recebeu o título de Patrimônio Histórico da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em 9 de julho de 2017, por ser o único vestígio material da chegada dos africanos escravizados na América.

Construído, em 1811, foi local de desembarque e comércio de escravizados africanos até 1831, com a proibição do tráfico transatlântico de escravos. Durante os vinte anos de sua operação, entre 500 mil e um milhão de escravizados desembarcaram no cais do Valongo.

Em 1843, o cais foi reformado para o desembarque da princesa Teresa Cristina de Bourbon-Duas Sicílias, que viria a se casar com o imperador D. Pedro II. O atracadouro passou então a chamar-se Cais da Imperatriz.

Entre 1850 e 1920, a área em torno do antigo cais tornou-se um espaço ocupado por negros escravizados ou libertos de diversas nações - área que o compositor e artista plástico Heitor dos Prazeres chamou de Pequena África.

Cais do Valongo - Patrimônio Histórico

Em 2011, durante as escavações realizadas como parte das obras de revitalização da zona portuária do Rio de Janeiro, foram descobertos os dois ancoradouros - Valongo e Imperatriz -, um sob o outro, e, junto a eles, uma grande quantidade de amuletos e objetos de culto originários do Congo, de Angola e Moçambique. O IPHAN e a prefeitura do Rio de Janeiro elaboraram um dossiê para a candidatura do sítio arqueológico do cais ao título de Patrimônio da Humanidade da Unesco. O sítio foi declarado patrimônio da humanidade na 41ª sessão do comitê da Unesco, em 2017.

Em 16 de outubro de 2023, a arqueóloga Tânia Andrade Lima, responsável pela descoberta do Cais, recebeu o prêmio internacional Hypatia Award 2023, da Confederação dos Centros Internacionais para a Conservação do Patrimônio Arquitetônico (CICOP Net). A homenagem aconteceu na abertura da 6.ª Bienal de Restauro Arquitetônico e Urbano (BRAU6), em Florença, na Itália, por seus serviços prestados à Arqueologia, à História e ao Patrimônio Cultural da Humanidade

Com a proibição do tráfico de africanos escravizados no Brasil no marco da Lei Eusébio de Queiroz de 4 de setembro de 1850, os desembarques continuaram acontecendo de forma ilegal em regiões adjacentes à cidade do Rio de Janeiro, como Niterói, Maricá, Angra dos Reis e outras.